quarta-feira, 20 de março de 2013

O Terror de São Vicente – Parte I


      Estava muito nervoso, mãos suadas e um pouco trêmulas. Sentia uma presença terrível dentro daquela cela, havia ordens expressas dizendo que, de forma alguma, o prisioneiro deveria ser liberto das correntes que lhe prendiam pulsos e pernas, ou da mordaça de couro que tampava-lhe a boca. Mas, minha curiosidade foi maior.
     Depois de alguns dias conversando, levando comida e cuidando de seus ferimentos, O Terror, concordou em relatar suas memórias. Que historiador resistiria a tal tentação? Fui escondido até a prisão de pedra erguida no meio da mata. Eu era o único autorizado a passar pela guarda. Tinha por missão exorcizar a criatura maligna ali presa. Talvez eu tenha sido seduzido, talvez tenha sido um erro escutá-la, no entanto, não poderia perder a oportunidade de registrar o que diria o ser mais caçado pela inquisição.

     Sentado à minha frente estava o ex-padre Henrique Gonçalvez, lendário por ter entregado a Feiticeira Vermelha à fogueira, porém, mais conhecido ainda por ser um ex-inquisidor que entregou-se as forças malignas da feitiçaria. Era alto, rosto bonito e olhos calmos. Estava desnutrido e possuía muitos ferimentos pelo corpo. Fora capturado pelos homens de Martim Afonso próxima à capitania de São Vicente, dezenas morreram antes que finalmente conseguissem pará-lo. Finalmente O Terror, como era conhecido, estava completamente isolado e logo seria levado para responder ao recém-criado, Tribunal Inquisitório Português. Por esse motivo, precisava escrever tudo, para de alguma forma ajudar no processo.

     Coloquei um jarro de vinho sobre a mesa e um pouco de pão. Henrique comeu rapidamente e deu um longo gole no vinho, fechou os olhos, por um instante, até esqueceu que suas mãos e pés ainda estavam presos e sorriu, depois de alguns minutos retornou à realidade e sua face fechou-se de uma forma maligna como sempre esteve. Prontamente comecei, mesmo que com um certo medo, a escrever:

Colônia do Brazil do Reino de Portugal, décimo sexto ano do reinado de Sua Magestade Real, D. João III.

     Parei a pena e fiz a pergunta que iniciaria todo aquele relato:

     — Quem é você?

     Houve um silêncio terrível, por um momento não havia o som dos pássaros lá fora, o vento não balançava mais a pequena janela, minha própria respiração não era audível. Henrique, que até então permanecia com o olhar na mesa, fitou-me de uma forma profunda, estremeci por completo. Então seus olhos focaram-se no horizonte e aquela sensação finalmente passou. Suas palavras ecoaram duramente na pequena cela.

     — Quem sou eu? — Falou consigo mesmo. — Eu sou um inquisidor! Ou não sou? Espera, eu era um feiticeiro! Um feiticeiro inquisidor? Não, era um cavaleiro. Ou fui um mouro? Acho que os dois. Queime-os meu bom imperador! Que artista o mundo vai perder. Trinta moedas de prata? É um preço bom. —  Conversava com ele mesmo, mas em vozes diferentes, como se outros seres habitassem seu corpo, era apavorante. — Há muitas memórias dentro de mim! — Por fim, acalmou-se e parou de proferir coisas sem nexo. Passei a escrever tudo. Solenemente ele bradou:

      — Eu odeio essa terra. Nunca quis vir para esse lugar. Teria ficado muito bem em Aragão, ou mesmo com minha família em Lisboa, mas tinha uma missão a ser cumprida. E na flor de minha juventude achei-me capaz de obter sucesso aonde até o grande Torquemada falhara. Já lhe disse que odeio essa terra? Pequenas vilas cercadas por gigantescas matas, em seu interior, nativos servindo a deuses estranhos, cultuando árvores e seres dos rios. O cenário perfeito para que a Feiticeira Vermelha pudesse esconder-se e continuar com suas ações diabólicas. Havia muitas histórias sobre ela, diziam que vivia há séculos, alguns falavam até em milênios, particularmente nunca acreditei. Vi bruxas gritando em fogueiras e, sabia que não importava o pacto que possuíam, a morte abraçava-as igual a todos.

      — Alguns dizem que somos cruéis, todavia meu objetivo foi sempre convertê-las. Diante da ineficácia das tentativas passei a entregá-las, com leveza na consciência, às fogueiras do reino. Quem ousa chamar-me de cruel, nunca teve um de seus filhos levados para não serem mais encontrados, ou pior, para achar partes de seus corpos.

      — Seguimos as pistas da Feiticeira que me trouxe até o Novo Mundo. Seu rastros foram perdidos no Vice-reino do Brazil, dessa forma, mandaram um português em seu encalço. As suspeitas levaram-me à Ilha de Vera Cruz, vasculhei-a durante um bom tempo, porém nada encontrei. Naquela época, não havia muitos índios amistosos como hoje, entretanto, alguns estavam tão apavorados com uma mulher vermelha que surgia na escuridão e levava seus filhos, que se dispunham a tentar conversar com o homem branco. Entendendo pouca coisa fui entrando no território, até que cheguei ao que hoje seria a Capitania de Porto Seguro. Foi lá que tudo aconteceu.

     — Somava-se três anos que eu me arriscava por aquelas terras, escapando muitas vezes da morte, que vinha acompanhada de índios, de animais ou mesmo de doenças desconhecidas. Vocês hoje estão partilhando essa colônia, penetrando em seu território, caçando seus habitantes, mas não sabem o poder que existe aqui. Eu odeio esse lugar. Um poder que fortaleceu ainda mais o inimigo, um poder saído da própria terra, das árvores, dos rios, dos animais; acho que agora entendo por que os nativos lutam com furor.
*
     Fez-se silêncio na cela. O ar ficou pesado, Henrique fechou os olhos e outra vez começou a conversar com si mesmo em sons distintos:

     — Deveria ter matado ela enquanto pôde! Igual a Abel? Veja o que Tepes fez! Mate todos esses bebês inúteis! Gostaria que Roma tivesse um pescoço para que pudesse cortar sua cabeça com um só golpe! — As vozes calaram-se. Como se saísse de um transe, Henrique voltou aos relatos:

     — Três anos longe de minha casa em Aragão! Como sobrevivi todo esse tempo nessa colônia desolada? Por que os índios não me mataram? Não sei ao certo, às vezes me viram como um aliado já que declarei-me inimigo da Feiticeira que os atormentavam, ou talvez, tenham achado que eu era igual a ela. Não atacaram-me, também nunca me ajudaram.

     — Entrei ainda mais no território, já sabia muito sobre as plantas locais, sobre os animais e seus hábitos, por isso achava que conseguiria sobreviver naquelas florestas. Troquei a batina por roupas normais e a água benta por armas. Iniciei a caminhada; avançava para o leste quando tropecei em uma raiz e rolei penhasco abaixo. Tive sorte por sofrer apenas arranhões. Cai em uma mata completamente diferente. Era como se não fizesse parte daquele habitat. As árvores eram grandes e seus galhos e folhas tampavam quase por completo a luz do sol. Senti que algo perigoso habitava aquela região. E era justamente o que eu procurava.

     — Uma larga trilha cortava a floresta ao meio. E um silêncio temível imperava. Não escutava-se animais correndo ou rastejando e os pássaros silenciaram.  Apenas uma tristeza súbita no ar, como se a própria natureza estivesse lamentando por um mal que a afligia. Sentia como se centenas de olhos observassem cada passo que eu dava. —  Mexendo muito o pescoço de um lado para o outro, Henrique sussurrou:
     — Eu ainda sinto aqueles olhos! Ou são meus olhos? — Ele tremia. E com uma voz doce de mulher falou:

     — Sinta meu corpo ardente cavaleiro de Deus!

     Se não fosse pelas correntes ele teria pulado em meu pescoço. Seus olhos estavam arregalados e dava gritos que não sairiam de um humano. Agitava-se, os soldados invadiram a cela e um deles bateu na cabeça dele com o cabo do arcabuz, desmaiando-o.

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